Nosocómio da alma

" L'absurdité est surtout le divorce de l'homme et du monde" Albert Camus, L'Étranger

quarta-feira, agosto 31, 2005

Cegada estival

O Portugal profundo diverte-se nos meses estivais. É tempo de descanso, de ócios, de reencontros, e de regressos às origens, às tradições que ( desgraçadamente ) marcam a nossa idiossincracia. É durante o Estio que uma cambada de selvagens, lá onde Portugal se confunde já com a Espanha, se dedicam ao sádico sacrifício de touros para gáudio de uma apregoada "alma barranquenha", que a todos nos vai envergonhando e que eu, em particular, desejo ardentemente ver extinta ou, pelo menos, expatriada. Para quem ainda se recorda, os "touros de morte" estavam legalmente interditados, por razões por demais evidentes. Os nossos governantes, untados de caridade divina, decidiram que o capricho de um povoado embrutecido se havia de sobrepôr ao sentimento da maioria da população e, em cometimento profundamente democrático, produziram uma salsada legal que permitiu, na prática, a institucionalização da chacina gratuita, com direito a banda de música, barraquinhas de comes e bebes, e honras de cobertura televisiva. Nesses mesmos meses de Verão, multiplicam-se igualmente as festas populares, em homenagem a uma hagiografia que já ninguém conhece. As festas populares são, por si só, um fenómeno irritante, num país em que os santos foram substituídos outros seres miríficos, como os jogadores de futebol, dos participantes no "Big Brother" e o Zézé Camarinha. Mas, como se isso não bastasse, as festas populares são ainda motivo para outros "happenings". Vem logo à ideia a transmutação das paredes do povoado em mictórios de ocasião; ou dos sanitários públicos em esgotos a céu aberto. Para além disso, as festas populares têm sempre alguns componentes imprescindíveis: um ou dois cançonetistas "populares", cujo repertório oscila entre a afirmação da alarvidade do macho ibérico e o desconsolo da consorte enganada; um padre que, com cara de enfado, vai presidindo à procissão que justifica que a festa seja ainda em honra de um santo qualquer, e não se chame já "arraial do Zé"; um número apreciável de basbaques mais ou menos bebidos, que vão bovinamente inspeccionando as fêmeas que passam, o que dá frequentemente origem a rituais de acasalamento ou a violentas disputas pelo direito a procriar, geralmente resolvidas à base da escarradela e do tabefe; se é ano de eleições, dois ou três candidatos afoitos que vão abraçando velhas gaiteiras e beijnado criancinhas inocentes. E, festa popular que se preze, não passa sem o lançamento de foguetes. Estes, como se sabe, são parte da tradição, e motivo para que ainda haja um número apreviável de manetas em Portugal É claro que o lançamento de tais projécteis está proibido nos meses de Verão, dado o risco de incêndio. Mas é tradição, e a tradição é para manter. Ademais, os incêndios podem sempre ser imputados aos madraços dos proprietários, que não limparam as matas...