Os Marabus e outros necrófagos
Tenho-me lembrado muito do Marabu, ultimamente. Foi ave que sempre me inspirou repugnância, desde que os romances de Salgari me deram a conhecer o necrófago que fazia os seus festins nas águas turvas do Ganges e do Bramaputra, retalhando os intestinos e arrancando os olhos dos cadáveres a que os ritos funerários locais faziam empreender jornada fluvial.
Mais tarde, vim a descobrir que, afinal, os marabus eram autóctones da América do Sul, sendo, pois, improvável que deambulassem pelos "Sunderbands" em reiterada profanação de defuntos. Concluí que os marabus da Índia de Salgari não o eram propriamente, havia erro de espécie mas não de género - e a designação, ou se devia a lapso de tradução, ou à construção remota do enredo pelo romancista, que se sabe que relatava realidades que lhe chegavam pela refracção da biblioteca pública mais próxima.
Pouco importa. É certo que existiam necrófagos que populavam as imediações dos rios sagrados da península indostânica. É até mais do que provável que desempenhassem uma missão útil, apropriando-se das reminiscências para as quais a natureza não teria destino imediato, senão o da multiplicação de miasmas sombrios e de pestes tenebrosas.A repugnância, essa, persiste, ante a reconstituição mental do retalhar de formas antropomórficas, consubstanciaiais à imagem que vamos tendo da dignidade humana, por uma ave de bico longo, plumagem soturna e crânio pelado. No fundo, no fundo, sabemos que o mundo está pleno de criaturas rapaces, que se nutrem dos despojos da desgraça alheia, e que vão agoirando infaustos acontecimentos.
No último sábado, enquanto almoçava, vi uma jornalista RTP referir-se ao previsível passamento do Papa como " a iminência de um grande acontecimento". Imaginei-a repentinamente de pescoço esfolado, calva mediada por um bico imenso, e farta plumagem negra. Imaginei-a grasnando o som dos endemonhados, apontando ao alto o bico ensanguentado com que retalhara a carniça. Jornalistas de merda, comentários de merda.
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