Nosocómio da alma

" L'absurdité est surtout le divorce de l'homme et du monde" Albert Camus, L'Étranger

sexta-feira, março 04, 2005

Dos bodes e outras criaturas destinadas à expiação de pecados alheios

"...Nos enim cum tandem ad Barbarorum sylvas, saltusque pervadimus, muti et surdi penitus invenimur; muti, quia loquendo non intelligimur; surdi, quia audiendo nonintelligimus..."


Padre António Vieira

[...quando finalmente atravessamos florestas e selvas em direcção à barbárie, estamos plenamente mudos e surdos; mudos, porque falando não somos entendidos; surdos, porque ouvindo não entendemos...]

O Juíz Conselheiro Nunes da Cruz, em plena corrida eleitoral para a presidência do STJ, veio acusar os Advogados de serem os responsáveis pelo atraso da justiça. A acusação não é nova e, como em outras ocasiões, foi feita no mesmo tom ligeiro, generalista e primário. Os antigos hebreus ofereciam em holocausto um bode para quem transferiam os seus pecados. Era desculpável e intelectualmente mais honesto - porque a humanidade ainda estava na infância do pensamento lógico; porque, pelo menos, se assumia que os pecados não eram do bode, mas da comunidade.

Em fases posteriores da história, o bode foi sendo substituído por homens - foram os cristãos no império romano, os judeus na Idade Média e no III Reich. Tratou-se, evidentemente, de uma regressão de que ninguém se poderá orgulhar,e que ainda vai episodicamente ressurgindo, ligado a extremismos, integrismos e outros "ismos " de semântica pouco abonatória. Resultam, ordinariamente, de concepções da ordem social onde a igualdade é só para alguns, e pressagiam a integração do comum mortal numa versão actual, ao vivo e a cores, da "Animal Farm". Não chegam a tomar a nuvem por Juno, tão grande é a cegueira de quem assim arenga, que não se descobre nu no palanque...

Cuido que o Dr. Nunes da Cruz, para além de jurista de inegáveis méritos, é homem assisado e com sentido de responsabilidade. Não sei a que atribuir as declarações. Talvez esteja cansado . Também eu estou farto das esperas de dois anos para se saber se, afinal, se realiza ou não uma peritagem; de mais uma ano para, afinal, saber quem a vai fazer; das kafkianas trocas de correspondência quando é necessário citar alguém no estrangeiro; da devolução ao meu escritório de autos de declarações em idiomas exóticos, sem a competente tradução; dos indeferimentos de alterações das datas das diligências para cuja marcação ninguém se dignou consultar-me, por uma despótica e não legislada "indisponibilidade de agenda do tribunal". Das execuções propostas para a quais, dois anos volvidos, não há data designada para penhora. Posso sempre aguentar. Posso optar por me dedicar à cultura hidropónica ou ao origami. Posso protestar. O que não posso é vir para a praça pública afirmar que os juízes e os funcionários judiciais são todos calões ou incompentes. Isso não o posso fazer. Até porque não é verdade, como geralmente não o são as generalizações.