Fábula - parte I
Era uma vez um cavaleiro andante, que decidiu partir em busca de dragões. Antes de embarcar em tão esforçada gesta, seguiu parecer avisado de consagrar ao conhecimento de tais quimeras um alongado lustre de estudos. Indagou junto de sábios e de homens santos, revolveu igrejos manuscritos e o ancestral pó das bibliotecas, seguiu cursos nas universidades de terras distantes, em tais paragens viu o horror e a destruição causada por tais criaturas, meditou em noites de angustiada insónia, e envolveu-se em inumeráveis querelas.
Certo dia, julgando-o dotado de fortaleza de corpo e de espírito, todos passaram a encará-lo como especialista em dragões - e, no seu magno mister, conhecia-lhes o viver e os costumes, pressentia-lhes as manhas, era versado em mil artes sobre como emboscar e combater tais criaturas.
Asinha soou a sua hora. Então, da panóplia retirou o estoque, o escudo, a durindana e a lança e, acalentado pela luz ígnea de um longínquo Levante, numa madrugada lá partiu, a galope do seu sonho.
Os meses passaram. A todos quantos encontrava , o nosso herói perguntava por donzelas raptadas, por cavernas sinistras fedendo a enxofre, por campos queimados, por castelos em escombros, por todos os indícios, enfim , que o guiassem de encontro à besta imunda. Debalde o fazia: dos inquiridos, uns abanavam a cabeça, incrédulos; outros, mais afoitos ou prevenidos, diziam-lhe à puridade não existirem tais coisas na ordem criada e querida pelo Verbo e, do alto da sua mundana ciência, juravam sobre a Santa Lei que " todalas essas cousas eram estórias d'imaginaçom e de pouco razoar".
Suspeitoso ante tamanho apartamento de escritura e prática, o nosso herói insistia em sua demanda; e muito embora sempre lhe dissessem que é a maioria quem tem a razão, ele insistia em considerar que , na ordem natural das coisas, mandava a razão divina, em todos os seus mistérios, e não as vozes dos homens.
Na espuma dos dias, o nosso herói viu-se subitamente impedido de levar a bom termo o seu propósito. Foi assim: a noite caíra . Encontrava-se o cavaleiro andante já recolhido ao agasalho do seu catre, quando um estrepitoso bater à porta da rua o veio desassossegar.
- Mas que vem a ser isto ? - indagou ele, através da porta entreaberta.
- Abram, em nome de El-rei e da Santa Inquisição.
Com matraqueada dureza de bater no passadiço, sete pares de botas precipitaram-se porta adentro: era o corregedor do crime que chegava, acompanhado por seis guardas.
- Terá de acompanhar-me - disse o corregedor ao nosso herói, sem sequer se dignar saudá-lo.
- Acompanhar? Por mercê de quem? Bem vos conheço: sois o doutor Sancho de Brites, da casa de El-rei e do seu desembargo.
- Senhor, eu aqui e agora não tenho cara, apenas cumpro ordens - cortou, seco, o corregedor.
- Que ordens?
Sem pestanejar, o corregedor desenrolou um papel, e leu-o:
"Nós, os inquisidores do Reino contra a herética pravidade e apostasia..."
O rosto do nosso herói empalideceu
"Fazemos saber ao mui magnífico doutor Sancho de Brites, corregedor do crime nesta cidade e comarca que, por neste Santo Ofício haver culpas obrigatórias a prisão contra..."
Em vão esquadrinhava o cavaleiro os meandros da sua memória em busca de cometimento que motivasse tão sinistro auto - mas, para além de ter aqui e acolá comido da carne em dia em que tal lhe era defeso, não se lembrava em que mais pudesse ter infringido os ditames da santa prática.
"...e com todo o resguardo e quietação se prenda o dito....e se entregue ao Alcaide do cárcere."
Sem tempo sequer para dispor algumas coisas do seu governo e de sua casa, o nosso herói foi levado, pelas alfurjas escuras da cidade, até ao cárcere. Aí chegado, tornaram-no, sem mais explicações, a um calabouço rochoso e húmido, onde o aguardava uma tábua à guisa de catre e a companhia dos ratos acidentais. Longos dias passou o nosso herói encerrado no seu calabouço, quebrada a monotonia apenas pela fugaz arribada diária de um balde de água salobra e de uma malga plena de uma potagem fétida. Uma manhã, quando a primeira claridade se fendia pela fresta gradeada, o cavaleiro ouviu o tinir das chaves e o levantar da tranqueta. Entraram então dois guardas, que apenas lhe disseram "segue-nos" .
Certo dia, julgando-o dotado de fortaleza de corpo e de espírito, todos passaram a encará-lo como especialista em dragões - e, no seu magno mister, conhecia-lhes o viver e os costumes, pressentia-lhes as manhas, era versado em mil artes sobre como emboscar e combater tais criaturas.
Asinha soou a sua hora. Então, da panóplia retirou o estoque, o escudo, a durindana e a lança e, acalentado pela luz ígnea de um longínquo Levante, numa madrugada lá partiu, a galope do seu sonho.
Os meses passaram. A todos quantos encontrava , o nosso herói perguntava por donzelas raptadas, por cavernas sinistras fedendo a enxofre, por campos queimados, por castelos em escombros, por todos os indícios, enfim , que o guiassem de encontro à besta imunda. Debalde o fazia: dos inquiridos, uns abanavam a cabeça, incrédulos; outros, mais afoitos ou prevenidos, diziam-lhe à puridade não existirem tais coisas na ordem criada e querida pelo Verbo e, do alto da sua mundana ciência, juravam sobre a Santa Lei que " todalas essas cousas eram estórias d'imaginaçom e de pouco razoar".
Suspeitoso ante tamanho apartamento de escritura e prática, o nosso herói insistia em sua demanda; e muito embora sempre lhe dissessem que é a maioria quem tem a razão, ele insistia em considerar que , na ordem natural das coisas, mandava a razão divina, em todos os seus mistérios, e não as vozes dos homens.
Na espuma dos dias, o nosso herói viu-se subitamente impedido de levar a bom termo o seu propósito. Foi assim: a noite caíra . Encontrava-se o cavaleiro andante já recolhido ao agasalho do seu catre, quando um estrepitoso bater à porta da rua o veio desassossegar.
- Mas que vem a ser isto ? - indagou ele, através da porta entreaberta.
- Abram, em nome de El-rei e da Santa Inquisição.
Com matraqueada dureza de bater no passadiço, sete pares de botas precipitaram-se porta adentro: era o corregedor do crime que chegava, acompanhado por seis guardas.
- Terá de acompanhar-me - disse o corregedor ao nosso herói, sem sequer se dignar saudá-lo.
- Acompanhar? Por mercê de quem? Bem vos conheço: sois o doutor Sancho de Brites, da casa de El-rei e do seu desembargo.
- Senhor, eu aqui e agora não tenho cara, apenas cumpro ordens - cortou, seco, o corregedor.
- Que ordens?
Sem pestanejar, o corregedor desenrolou um papel, e leu-o:
"Nós, os inquisidores do Reino contra a herética pravidade e apostasia..."
O rosto do nosso herói empalideceu
"Fazemos saber ao mui magnífico doutor Sancho de Brites, corregedor do crime nesta cidade e comarca que, por neste Santo Ofício haver culpas obrigatórias a prisão contra..."
Em vão esquadrinhava o cavaleiro os meandros da sua memória em busca de cometimento que motivasse tão sinistro auto - mas, para além de ter aqui e acolá comido da carne em dia em que tal lhe era defeso, não se lembrava em que mais pudesse ter infringido os ditames da santa prática.
"...e com todo o resguardo e quietação se prenda o dito....e se entregue ao Alcaide do cárcere."
Sem tempo sequer para dispor algumas coisas do seu governo e de sua casa, o nosso herói foi levado, pelas alfurjas escuras da cidade, até ao cárcere. Aí chegado, tornaram-no, sem mais explicações, a um calabouço rochoso e húmido, onde o aguardava uma tábua à guisa de catre e a companhia dos ratos acidentais. Longos dias passou o nosso herói encerrado no seu calabouço, quebrada a monotonia apenas pela fugaz arribada diária de um balde de água salobra e de uma malga plena de uma potagem fétida. Uma manhã, quando a primeira claridade se fendia pela fresta gradeada, o cavaleiro ouviu o tinir das chaves e o levantar da tranqueta. Entraram então dois guardas, que apenas lhe disseram "segue-nos" .
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