Nosocómio da alma

" L'absurdité est surtout le divorce de l'homme et du monde" Albert Camus, L'Étranger

quarta-feira, março 09, 2005

Fábulas- parte II

Imundo, cheio de vermina e de sarna, mordido de pulgas e chinches, o cavaleiro subiu por uma tortuosa escada, e transposta uma ampla galeria, entrou breve numa sala; era uma ampla quadra rectangular iluminada, à esquerda e à direita, por largos vitrais. A meio, sobre um estrado encerado, mesa comprida ladeada de cadeirões, amortalhada por toalha de linho branco, sobre a qual se quedavam tinteiros, penas, grossos alfarrábios, a sineta e o livro de assentos. Ladeando o estrado, de cada lado, duas sortes de currais de gado, preenchidos por pesados bancos corridos onde se amontoavam os representantes das várias ordens sociais. Em frente da mesa, um escabelo de madeira nua.
-todos de pé - ouviu-se uma voz
Vinham a entrar, de ascético barrete e envergando túnicas negras, o doutor em cânones Simão de Castro e o licenciado Gil Menezes. Seguia-os o secretário Jorge de Sá.
O presidente sentou-se à cabeceira da mesa, o outro inquisidor do lado direito e o secretário à esquerda.
-Sente-se o Réu - ordenou o presidente. - sabes ao que vens?
- Venho ante Vossas Mercês solicitar me digam minhas culpas por que fui preso...
- Como ousas?
- Sabendo minhas culpas, saberei se fui preso em causa ou sem ela.
- Neste Santo Ofício não se dizem culpas a nenhuma pessoa; primeiro que se prenda alguém, faz-se-lhe saber que as suas culpas foram bem examinadas. Assim se fez contigo - retorquiu Gil Menezes.
- Mas, se primeiro me prendestes e agora quereis examinar as minhas culpas...
- Os inquiridores contra a herética pravidade e heresia acharam-te culpas obrigatórias a prisão - interrompeu Gil Menezes
- Admoestamos-te que queiras encomendar-te ao Altíssimo e fazer discurso contigo e de tua vida e confessar tudo quanto sentires teres feito, dito e conversado contra a nossa Santa fé e juízo do mundo...
-Contra?!- exclamou o cavaleiro, indignado
- O réu não interrompe Sua Reverência - repreendeu o secretário
-...destarte, confessando a verdade de tudo com verdadeiro arrependimento, possas ser merecedor da misericórdia que neste Reino se usa com os confitentes e penitentes. E admoestamos - te que digas a verdade, tu que andaste por partidas estrangeiras onde te empeçonharam a alma com ideia malévola...
- empeçonharam?
- Lembre-se o réu que está a depor perante o tribunal da Santa Inquisição, ao qual se deve dirigir com humildade e respeito - cortou asperamente Gil Menezes
- Coloca a tua mão sobre os Santos Evangelhos e jura dizer toda a verdade. Tudo o que disseres ficará exarado em auto
O cavaleiro, contrafeito, lá estendeu a mão direita sobre o livro que lhe estendiam, e disse:
- Juro dizer toda a verdade - e concluiu, mal humorado - nem para outra coisa me quiseram cá.
Risos abafados nas bancadas do júri.
- Estamos à espera que fales - disse o presidente
O cavaleiro expôs então, demoradamente, o que havia feito na vida até então; descreveu com detalhe os seus estudos, e as suas viagens em busca de dragões; falou mesmo do elogio que lhe atribuíra o Rei Pantaleão, que está em glória, após ter lido uma das obras que publicara...
- Nas tuas obras atentaste amiúde contra o Santo entendimento do mundo e da vida, e descrevestes bestas hediondas contrárias aos costumes, assim é nosso parecer - rosnou Simão de Castro. - e também privaste com João Platereno, quando te encontravas em Pósnia, pregador da seita das Lucernas.
- Enquanto estava em Pósnia, agasalhando-me eu casa do burgomestre, foi-me perguntado se desejava ver o tal João Platereno que o convidaria a jantar. Folgaria de o ver, respondi-lhe. De feito veio aí o jantar. E jantámos todos a uma mesa onde vieram também jantar outras pessoas honradas da cidade. Entre práticas havidas, o meu anfitrião, que não me pareceu muito dado ao Santo e recto entendimento, disse-me que João Platereno tinha feito um livro, em língua latina, das coisas do mundo, assim das seculares como do mais, acerca da ordem das coisas e da existência das esferas e dos costumes e de como haviam de viver...
- Viste e leste esse livro?
- Nem vi nem li. Alevantámo-nos da mesa e eu não sou lembrado de termos praticado nenhuma cousa, então nem depois, que fosse contra o Santo juízo e entendimento.
-Depois foste-te a Friburgo da Brisgóvia, onde privaste com Sebastião Frólis e com Onofre da Salisbúria e com outros seguidores da seita das Lucernas.
- Vieram a jantar comigo, por insistência do estalajadeiro, e vieram também aí a jantar um capitão de alabardeiros e um físico. Se eram sequazes das Lucernas, não sou bem lembrado.
- E que dizia Sebastião?
- Na prática que tivemos à mesa veio a dizer que tudo o que fazia era a bom fim, trazer aquele povo à verdade e salvarem-se as almas que eram perdidas.
- Que lhe respondestes?
- Não sou bem lembrado, mas parecia-me mal o que dizia
- E que dizia Onofre da Salisbúria?
- Que seguia a doutrina de Sebastião por lhe parecer a autêntica. Não lhe respondi senão que lhe dei a entender não me comprazer de o ouvir.
- Também tens vindo a dizer e escrever coisas contra o recto entendimento, sobre bestas que não existem e assim sustentas que, não cumprido o que dizes, elas virão a estas partes e tudo destruirão.
- Do que tenho feito e dito já vos fui dando parte. Firmo-me na ciência dos antigos e dos novos, nos livros que fazem bem a meu ofício e na experiência. Em nada me apartei da Santa prática e do recto entendimento
- Ousas então dizer que viste dragões no mundo superior?
- Em verdade vos digo que os vi; e também vi o que faziam, por onde passavam. E indaguei e li e sei da forma de os enfrentar.
- Ousas então desafiar a nossa autoridade, a autoridade das Escrituras e do Santo Concílio, e o recto entendimento do povo aqui presente, que sabe que , por intervenção do Divino, foram os dragões encerrados no mundo inferior, desde tempos imemoriais?
- Das Escrituras, não consta tal notícia. Quanto ao mais, não sei o que vos diga, senão que os vi, porque de outra forma faltaria à verdade que não posso, por estar ajuramentado.
Grande clamor na sala; das bancadas do júri, levantavam - se vozes ameaçadoras, prontamente silenciados a varapau de marmeleiro pelos guardas presentes, a um sinal do secretário.
O martírio das perguntas continuou, durante várias semanas. Ao fim de cada dia, o cavaleiro era levado de novo ao calabouço, para, no dia seguinte, retornar pela escada em caracol à sala.
Um dia, os guardas vieram buscar o cavaleiro, como habitualmente. Escalados os degraus em espiral, transposto o corredor, aguardou o nosso herói junto ao escabelo, entregue aos moderados chisques dos jurados, enquanto os inquisidores entravam, cheios de caridade e unção divina. Sentados todos, disse Simão de Sá:
- Várias vezes vieste a esta casa e te admoestámos com benevolência confessasses tuas culpas e dissesses verdade delas. Com mau conselho não o quiseste fazer. Tornámos agora a admoestar-te que caias na verdade e de disponhas a confessar de tuas culpas e peças perdão delas. Senão vem o promotor fiscal com libelo criminal contra ti. Aproveitar-te-á muito mais confessar antes que depois.
- Saibam Vossas Mercês que já tenho confessado o que sinto em minha consciência. Não tenho mais nada a confessar. Sempre fui seguidor da boa prática e do bom juízo. Se acaso alguma vez errei, disso peço perdão e misericórdia.
A um sinal de Simão de Sá, o secretário fez tinir a campainha. Logo se abriram as portas , e passos abafados resvalaram por sobre o granito; apareceu o promotor fiscal com um rolo de papel na mão. A um sinal do presidente, desenrolou-o e leu o seu teor, de que se dá breve notícia:
"... criado na verdadeira fé e por tal havido e conhecido e obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina O Altíssimo e seus representantes na terra, fê-lo muito pelo contrário, a firmando proposições heréticas e contrárias ao recto entendimento...em certas vezes, praticou com certa companhia nos erros de João de Platireno, torcendo para isso algumas autoridades...muita amizade com grandes hereges e cabeças deles e heresiarcas, com eles comunicava, comia e bebia...viajava muitas léguas para ir ter com eles, recebia deles cartas e livros e ensinamentos e lhes respondia, era entre eles muito conhecido e convidado e tinha com eles muita conversação...inclinado à maldita seita e pouca afeição à Verdadeira prática e suas constituições e ensinamentos, desfazendo nelas por autoridades que para isso alegava...comia da carne, indiferenter, sem licença nem necessidade urgente...afeiçoado aos erros da seita maldita e aos seus sequazes, já que em pessoa os não podia conversar e comunicar, por estarem distantes ou ser já havido o seu passamento, os conversava por vil lição dos seus livros que possuía, proibidos pelo catálogo do Sagrado Concílio... confessou ter feito pacto com o Demo em partidas distantes, para assim descer ao mundo inferior e ver as criaturas imundas e se entregar aos prazeres interditos e demoníacos...e essa lição e essa prática argúi o réu de suspeito no crime de heresia por que é acusado, acrescenta e ajuda a prova que contra ele há desse crime, mormente sendo-lhe achados escritos e desenhos das ditas bestas...muitas vezes admoestado confessasse suas culpas e pedisse delas perdão, usando mau conselho o não quis fazer, antes, acinte e maliciosamente, oculta os erros e aleivosia contra o Sagrado Concílio e por tal deve ser declarado herege contumaz e negativo e condenado nas penas de direito...que seja condenado a ordálio como a seguir se dá notícia: que seja alçada coluna de pedra com dez jardas de altura na saída da cidade; que no alto da dita seja posto estrado de pequenez bastante para que o herege, podendo sentar-se, não possa entregar-se ao sono; que ao dito estrado seja alevantado o herege, sem viandas ou águas ou cousas de qualquer sorte, e lhe seja defeso daí descer e que para isso lhe ponham correntes; que o herege aí aguarde pela chegada do Juízo Final ou, e disso nos livre a Divina Providência, que aí o venha buscar o Demo com quem o dito fez pacto ou mostre dragão que o faça descer."
Na manhã seguinte, o nosso Amadis transmutou-se em estilista. Empoleirado sobre as estreitas tábuas, no alto da sua coluna, privado de água e de comida, definhou lentamente, crestado pelo sol e açoitado pelos ventos. Ao décimo terceiro dia de suplício, numa madrugada nevoenta, um urro hediondo, agourento , cortou os ares. Às primeiras horas da manhã, um bicho alado, esverdeado e grande como uma carraca apareceu sobre a cidade, cuspindo fogo . De nada valeram as descargas dos arcabuzes, dos falconetes e das colubrinas. Bem couraçada, a alimária sobrevoava as muralhas e, com gestos certeiros, flamejava soldados e armas, esmagava construções e devorava os homens. Dois outros dragões vieram juntar-se ao primeiro e, em matilha, assim foram semeando a morte e a destruição ,primeiro naquela cidade, depois por todo o reino. Da sua coluna, já moribundo, o cavaleiro viu ainda, antes de exalar o último suspiro, a cidade carbonizada, uma vaca que corria em chamas, e o cadáver semi devorado de Simão de Sá, a caveira já privada do resplendor de santidade que a costumava aureolar(que os mais avisados atribuíam à abundante quantidade de azeite virgem com que fazia friccionar a calva, todas as manhãs) .

Séculos mais tarde, uma expedição arqueológica encontrou, intacta, a bizarra coluna no meio de um deserto e, a seus pés, os escombros de uma cidade. No topo da coluna aguardava-os, aninhado, o corpo sem vida do cavaleiro, as feições dessecadas pelo ar quente do deserto, um indesmentível sorriso a cortar-lhe o rosto. Os arqueólogos não conseguiram divisar outra explicação para o semblante sorridente em quem tinha sido condenado a tão atroz suplício, senão o estado de loucura em que supostamente caíra, pouco antes do seu passamento . E no entanto...