Nosocómio da alma

" L'absurdité est surtout le divorce de l'homme et du monde" Albert Camus, L'Étranger

segunda-feira, abril 07, 2008

O acordo ortográfico

Se bem me lembro, como dira Vitorino Nemésio, o acordo ortográfico foi concluído em 1990, e a sua entrada em vigor foi sucessivamente adiada. O estrepitoso mal-estar que por aí se ouve parece-me outra coisa, e que não tem tanto a ver com a bondade ( ou maldade) do acordo.



Confesso que não sou um grande entusiasta ( nem deixo de ser) do acordo; até aceito que a sua maior utilidade, a unificação da grafia da língua, não será alcançada, dada a existência de formas alternativas ( "económico " ou "econômico", por exemplo), o que deita por terra o argumento das "poupanças" nas produções conjuntas em fóruns internacionais ( o que, aliás, já seria dificilmente relizável, dada a diversidade discursiva).

Parece, todavia, que o malquisto acordo está a provocar tanto frenesim, por outro motivo, nem sempre proclamado, pelo menos a céu aberto- há quem entenda que os donos da língua residem apenas cá, na civilizada Europa, sendo tudo o resto pouco mais do que uma pobre desculpa acrioulada, pelo que, se quiserem, deveriam ser "os outros" a adaptarem a nossa grafia. Vi o argumento ser ontem repetido "ad nauseam", numa rádio, sob diferentes roupagens, onde até o "Linguajar" das telenovelas serviu para alimentar a polémica. A argumentação é injusta, e roça a xenofobia: A nossa língua, esse "rude e doloroso idioma" de que falava Bilac ( não , não é aquela criatura canora...) é, há muito, sobretudo atlântica, algo asiática também, fugidiamente semita, definitiva e não exclusivamente europeia. Não nos caem os parentes na lama por aceitarmos uma aproximação de grafia entre "os dois lados do charco". O português de Portugal continuará a ser diferente do Português do Brasil, de Angola, De Moçambique, de Timor, das pequenas bolsas resistentes que ainda persistem em Goa, com grafia aproximada ( não unificada- leiam o acordo...) ou sem ela. Em vez de argumentos vazios, talvez seja altura de conhecer essas outras faces da nossa língua, comover-se com os versos de Drummond de Andrade ou de Rui Knopfli; decifrar, por entre a arbustiva grafia, a imensa grandeza de "Grande Sertão: Veredas"; rir com as desventuras do detective Jaime Bunda, a genial criação de Pepetela; colar as retinas ao papel de"O vendedor de passados". Quem ache que isso é um choque muito grande, poderá sempre começar por algo de mais mitigado - leia "Longe de Manaus", de Francisco José Viegas, escrito a dois tempos, no português de Portugal e do Brasil. Pelo menos, em mim, não teve efeitos secundários.