Nosocómio da alma

" L'absurdité est surtout le divorce de l'homme et du monde" Albert Camus, L'Étranger

quarta-feira, junho 22, 2005

Os santos

Em Portugal, desobrem-se virtudes insuspeitas às pessoas quando estas morrem. O caso de Álvaro Cunhal e de Vasco Gonçalves são, a esse respeito, paradigmáticos. Durante uma semana, as invocações, aclamações, recordações e efabulações diárias chegavam-nos de todo o lado. Eu, que nunca morri de amores por Cunhal ou por Vasco Gonçalves , acho estranha esta beatificação profana.
De Vasco Gonçalves, arquivo em memória que o senhor era dado a discursos que a televisão transmitia e que eu gostava de ver, talvez pelo pendor histriónico do orador. Lembro-me nitidamente de alguns passagens do célebre discurso de Almada, e de ter andado atrás dos meus pais (tinha quatro anos na altura) a indagar sobre o significado de "reacção" e de "revolução". De Cunhal, tenho recordações mais profundas. Foi graças a ambos ( e a tantos outros) que durante muito tempo pensei que "fascista" era sinónimo de "automobilista".

terça-feira, junho 21, 2005

O Senhor Presidente

"Wer die Wahrheit nicht weiß, der ist bloß ein Dummkopf. Aber wer sie weiß und sie eine Lüge nennt, der ist ein Verbrecher."* - (Bertold Brecht)

(* em tradução mais ou menos livre -" Aquele que não conhece a verdade, é apenas um tolo. Mas aquele que a conhece e lhe chama mentira, é um criminoso")


O senhor presidente foi à Finlândia, ao Japão e à China. Regressou enérgico, mais afoito e com tiques de estrangeirado.
O senhor presidente viveu uma catarse profana que lhe permite, agora, zurzir alegremente nos seus compatriotas, consabidamente madraços e incompetentes, à excepção de uma ilustrada minoria que atafulha aviões em cada deslocação presidencial, e por quem se distribuem medalhas no 10 de Junho.
O senhor presidente é do parecer que as empresas portuguesas precisam de "inovação" e de "acrescentar valor" aos seus produtos. O senhor presidente observa beatificamente os produtos "made in China" que vão chegando às carradas, a cinco réis de mel coado, considerando-os uma meridiana consequência da "competitividade" . O senhor presidente é da opinião de que na Finlândia é que é, com os professores a viverem semanalmente, com alegre espírito de missão, 50 horas semanais no respectivo local de trabalho, o que , por si só, justifica o "sucesso" finlandês. O senhor presidente descobriu agora, e di-lo nos seus discursos cheios de unção e de caridade divinas, que uma banca mefistotélica emprestou alarvemente dinheiro para a compra do último GTI ou para semanas de insolação em regiões subtropicais, mas evitou (ou evita) arriscar um chavo na estrutura produtiva do país. O senhor presidente apela, solenemente, ao patriotismo e ao martírio pela indigência para a salvação das finanças pátrias...
Desconfio que o senhor presidente, ao contrário dos ricos do Dr. Homem (filho) não anda tolo. Só não sei por que não diz quanto custaram e custam as suas perambulações pelas sete partidas do mundo. Não percebo por que não nos informa sobre quanto ganha um operário na "competitiva " China, e quais os direitos sociais de que dispõe . Espanta-me, por outro lado, que a ordeira Finlândia tenha mandado às malvas ( ou à merda, como se preferir) a Directiva 93/104/CE, fixando uma jornada laboral contemporânea da descoberta da iluminação artificial e do tear a vapor . Ficou, talvez, por elucidar que, na Finlândia, um professor não é um saltimbanco desautorizado a quem o Estado lança a côdea incerta de um horário incompleto a duzentos ou trezentos quilómetros de distância da residência habitual. Permanecemos nós, pobres e brutos contribuintes, que não nos pudemos cultivar na contemplação desse "Brave new world" que o senhor presidente conhece, ignorantes quanto às fórmulas alquímicas da "inovação" e da "incorporação de valor" que o senhor presidente, com mel na língua, vai referindo;quedamo-nos esperançosos, porém, que este novo Verney nos indique, lesta e certeiramente, como é que, afinal, se "inova" e se "acrescenta valor".
Não sei por que razão o senhor presidente acolheu sem reservas , com a candura e o entusiasmo do petiz a quem ofertam algodão-doce, as histriónicas aventuras da Expo 98 e do Euro 2004. Não sei também onde estava o senhor presidente, enquanto se construíam à tripa-forra habitações suficientes para albergar metade da população turca ,e se convocavam alegremente "as famílias" para a desventura do crédito quase perpétuo. Talvez, à data, o senhor presidente andasse em jornada, preparando-se para o tempo que havia de vir e em que nos seriam feitas assombrosas revelações.
O senhor presidente deve andar fatigado. Deve ser do "jet -leg". Eu, pela minha parte, estou cansado. Farto, se quiserem -do senhor presidente, e dos seus discursos.