terça-feira, março 22, 2005
O PSD e o CDS/PP, à falta de melhor para fazerem, vieram zurzir de novo em Freitas do Amaral, a propósito da sua participação no novo executivo socialista. Freitas do Amaral, à falta de melhor para dizer, veio afirmar que os citados partidos tinham "inveja" do elenco governativo, onde se encontram tantas e tão ilustres personalidaes, entre elas ele próprio. A inveja é, como se sabe, um dos sete pecados capitais, de acordo com a classificação de S. Tomás de Aquino na "Summa Theologica" - os outros são a vaidade, a avareza, a ira, a luxúria, a gula e a acídia.
Como bom cristão, deveria Freitas do Amaral saber que nunca se deve lançar a primeira pedra, por muita destreza que se tenha no manejo da funda- até porque ela pode caír em cima do confiante fundibulário, sob o rótulo de " inanis gloria"...
segunda-feira, março 21, 2005
Uma boa medida
A Câmara Municipal de Matosinhos está de parabéns: juntamente com a polícia municipal, decidiu empreender uma campanha de "educação para a cidadania", optando por fixar uns autocolantes de grandes dimensões nos pára-brisas dos automóveis mal estacionados, em vez dos habituais autos. Diz quem por lá vive que, efectivamente, o número de carros mal estacionados está a diminuir. O que demonstra que a "educação cívica" não se faz necessariamente à lambada, ou pelo recurso a coimas elevadas.
quinta-feira, março 10, 2005
quarta-feira, março 09, 2005
Fábulas- parte II
Imundo, cheio de vermina e de sarna, mordido de pulgas e chinches, o cavaleiro subiu por uma tortuosa escada, e transposta uma ampla galeria, entrou breve numa sala; era uma ampla quadra rectangular iluminada, à esquerda e à direita, por largos vitrais. A meio, sobre um estrado encerado, mesa comprida ladeada de cadeirões, amortalhada por toalha de linho branco, sobre a qual se quedavam tinteiros, penas, grossos alfarrábios, a sineta e o livro de assentos. Ladeando o estrado, de cada lado, duas sortes de currais de gado, preenchidos por pesados bancos corridos onde se amontoavam os representantes das várias ordens sociais. Em frente da mesa, um escabelo de madeira nua.
-todos de pé - ouviu-se uma voz
Vinham a entrar, de ascético barrete e envergando túnicas negras, o doutor em cânones Simão de Castro e o licenciado Gil Menezes. Seguia-os o secretário Jorge de Sá.
O presidente sentou-se à cabeceira da mesa, o outro inquisidor do lado direito e o secretário à esquerda.
-Sente-se o Réu - ordenou o presidente. - sabes ao que vens?
- Venho ante Vossas Mercês solicitar me digam minhas culpas por que fui preso...
- Como ousas?
- Sabendo minhas culpas, saberei se fui preso em causa ou sem ela.
- Neste Santo Ofício não se dizem culpas a nenhuma pessoa; primeiro que se prenda alguém, faz-se-lhe saber que as suas culpas foram bem examinadas. Assim se fez contigo - retorquiu Gil Menezes.
- Mas, se primeiro me prendestes e agora quereis examinar as minhas culpas...
- Os inquiridores contra a herética pravidade e heresia acharam-te culpas obrigatórias a prisão - interrompeu Gil Menezes
- Admoestamos-te que queiras encomendar-te ao Altíssimo e fazer discurso contigo e de tua vida e confessar tudo quanto sentires teres feito, dito e conversado contra a nossa Santa fé e juízo do mundo...
-Contra?!- exclamou o cavaleiro, indignado
- O réu não interrompe Sua Reverência - repreendeu o secretário
-...destarte, confessando a verdade de tudo com verdadeiro arrependimento, possas ser merecedor da misericórdia que neste Reino se usa com os confitentes e penitentes. E admoestamos - te que digas a verdade, tu que andaste por partidas estrangeiras onde te empeçonharam a alma com ideia malévola...
- empeçonharam?
- Lembre-se o réu que está a depor perante o tribunal da Santa Inquisição, ao qual se deve dirigir com humildade e respeito - cortou asperamente Gil Menezes
- Coloca a tua mão sobre os Santos Evangelhos e jura dizer toda a verdade. Tudo o que disseres ficará exarado em auto
O cavaleiro, contrafeito, lá estendeu a mão direita sobre o livro que lhe estendiam, e disse:
- Juro dizer toda a verdade - e concluiu, mal humorado - nem para outra coisa me quiseram cá.
Risos abafados nas bancadas do júri.
- Estamos à espera que fales - disse o presidente
O cavaleiro expôs então, demoradamente, o que havia feito na vida até então; descreveu com detalhe os seus estudos, e as suas viagens em busca de dragões; falou mesmo do elogio que lhe atribuíra o Rei Pantaleão, que está em glória, após ter lido uma das obras que publicara...
- Nas tuas obras atentaste amiúde contra o Santo entendimento do mundo e da vida, e descrevestes bestas hediondas contrárias aos costumes, assim é nosso parecer - rosnou Simão de Castro. - e também privaste com João Platereno, quando te encontravas em Pósnia, pregador da seita das Lucernas.
- Enquanto estava em Pósnia, agasalhando-me eu casa do burgomestre, foi-me perguntado se desejava ver o tal João Platereno que o convidaria a jantar. Folgaria de o ver, respondi-lhe. De feito veio aí o jantar. E jantámos todos a uma mesa onde vieram também jantar outras pessoas honradas da cidade. Entre práticas havidas, o meu anfitrião, que não me pareceu muito dado ao Santo e recto entendimento, disse-me que João Platereno tinha feito um livro, em língua latina, das coisas do mundo, assim das seculares como do mais, acerca da ordem das coisas e da existência das esferas e dos costumes e de como haviam de viver...
- Viste e leste esse livro?
- Nem vi nem li. Alevantámo-nos da mesa e eu não sou lembrado de termos praticado nenhuma cousa, então nem depois, que fosse contra o Santo juízo e entendimento.
-Depois foste-te a Friburgo da Brisgóvia, onde privaste com Sebastião Frólis e com Onofre da Salisbúria e com outros seguidores da seita das Lucernas.
- Vieram a jantar comigo, por insistência do estalajadeiro, e vieram também aí a jantar um capitão de alabardeiros e um físico. Se eram sequazes das Lucernas, não sou bem lembrado.
- E que dizia Sebastião?
- Na prática que tivemos à mesa veio a dizer que tudo o que fazia era a bom fim, trazer aquele povo à verdade e salvarem-se as almas que eram perdidas.
- Que lhe respondestes?
- Não sou bem lembrado, mas parecia-me mal o que dizia
- E que dizia Onofre da Salisbúria?
- Que seguia a doutrina de Sebastião por lhe parecer a autêntica. Não lhe respondi senão que lhe dei a entender não me comprazer de o ouvir.
- Também tens vindo a dizer e escrever coisas contra o recto entendimento, sobre bestas que não existem e assim sustentas que, não cumprido o que dizes, elas virão a estas partes e tudo destruirão.
- Do que tenho feito e dito já vos fui dando parte. Firmo-me na ciência dos antigos e dos novos, nos livros que fazem bem a meu ofício e na experiência. Em nada me apartei da Santa prática e do recto entendimento
- Ousas então dizer que viste dragões no mundo superior?
- Em verdade vos digo que os vi; e também vi o que faziam, por onde passavam. E indaguei e li e sei da forma de os enfrentar.
- Ousas então desafiar a nossa autoridade, a autoridade das Escrituras e do Santo Concílio, e o recto entendimento do povo aqui presente, que sabe que , por intervenção do Divino, foram os dragões encerrados no mundo inferior, desde tempos imemoriais?
- Das Escrituras, não consta tal notícia. Quanto ao mais, não sei o que vos diga, senão que os vi, porque de outra forma faltaria à verdade que não posso, por estar ajuramentado.
Grande clamor na sala; das bancadas do júri, levantavam - se vozes ameaçadoras, prontamente silenciados a varapau de marmeleiro pelos guardas presentes, a um sinal do secretário.
O martírio das perguntas continuou, durante várias semanas. Ao fim de cada dia, o cavaleiro era levado de novo ao calabouço, para, no dia seguinte, retornar pela escada em caracol à sala.
Um dia, os guardas vieram buscar o cavaleiro, como habitualmente. Escalados os degraus em espiral, transposto o corredor, aguardou o nosso herói junto ao escabelo, entregue aos moderados chisques dos jurados, enquanto os inquisidores entravam, cheios de caridade e unção divina. Sentados todos, disse Simão de Sá:
- Várias vezes vieste a esta casa e te admoestámos com benevolência confessasses tuas culpas e dissesses verdade delas. Com mau conselho não o quiseste fazer. Tornámos agora a admoestar-te que caias na verdade e de disponhas a confessar de tuas culpas e peças perdão delas. Senão vem o promotor fiscal com libelo criminal contra ti. Aproveitar-te-á muito mais confessar antes que depois.
- Saibam Vossas Mercês que já tenho confessado o que sinto em minha consciência. Não tenho mais nada a confessar. Sempre fui seguidor da boa prática e do bom juízo. Se acaso alguma vez errei, disso peço perdão e misericórdia.
A um sinal de Simão de Sá, o secretário fez tinir a campainha. Logo se abriram as portas , e passos abafados resvalaram por sobre o granito; apareceu o promotor fiscal com um rolo de papel na mão. A um sinal do presidente, desenrolou-o e leu o seu teor, de que se dá breve notícia:
"... criado na verdadeira fé e por tal havido e conhecido e obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina O Altíssimo e seus representantes na terra, fê-lo muito pelo contrário, a firmando proposições heréticas e contrárias ao recto entendimento...em certas vezes, praticou com certa companhia nos erros de João de Platireno, torcendo para isso algumas autoridades...muita amizade com grandes hereges e cabeças deles e heresiarcas, com eles comunicava, comia e bebia...viajava muitas léguas para ir ter com eles, recebia deles cartas e livros e ensinamentos e lhes respondia, era entre eles muito conhecido e convidado e tinha com eles muita conversação...inclinado à maldita seita e pouca afeição à Verdadeira prática e suas constituições e ensinamentos, desfazendo nelas por autoridades que para isso alegava...comia da carne, indiferenter, sem licença nem necessidade urgente...afeiçoado aos erros da seita maldita e aos seus sequazes, já que em pessoa os não podia conversar e comunicar, por estarem distantes ou ser já havido o seu passamento, os conversava por vil lição dos seus livros que possuía, proibidos pelo catálogo do Sagrado Concílio... confessou ter feito pacto com o Demo em partidas distantes, para assim descer ao mundo inferior e ver as criaturas imundas e se entregar aos prazeres interditos e demoníacos...e essa lição e essa prática argúi o réu de suspeito no crime de heresia por que é acusado, acrescenta e ajuda a prova que contra ele há desse crime, mormente sendo-lhe achados escritos e desenhos das ditas bestas...muitas vezes admoestado confessasse suas culpas e pedisse delas perdão, usando mau conselho o não quis fazer, antes, acinte e maliciosamente, oculta os erros e aleivosia contra o Sagrado Concílio e por tal deve ser declarado herege contumaz e negativo e condenado nas penas de direito...que seja condenado a ordálio como a seguir se dá notícia: que seja alçada coluna de pedra com dez jardas de altura na saída da cidade; que no alto da dita seja posto estrado de pequenez bastante para que o herege, podendo sentar-se, não possa entregar-se ao sono; que ao dito estrado seja alevantado o herege, sem viandas ou águas ou cousas de qualquer sorte, e lhe seja defeso daí descer e que para isso lhe ponham correntes; que o herege aí aguarde pela chegada do Juízo Final ou, e disso nos livre a Divina Providência, que aí o venha buscar o Demo com quem o dito fez pacto ou mostre dragão que o faça descer."
Na manhã seguinte, o nosso Amadis transmutou-se em estilista. Empoleirado sobre as estreitas tábuas, no alto da sua coluna, privado de água e de comida, definhou lentamente, crestado pelo sol e açoitado pelos ventos. Ao décimo terceiro dia de suplício, numa madrugada nevoenta, um urro hediondo, agourento , cortou os ares. Às primeiras horas da manhã, um bicho alado, esverdeado e grande como uma carraca apareceu sobre a cidade, cuspindo fogo . De nada valeram as descargas dos arcabuzes, dos falconetes e das colubrinas. Bem couraçada, a alimária sobrevoava as muralhas e, com gestos certeiros, flamejava soldados e armas, esmagava construções e devorava os homens. Dois outros dragões vieram juntar-se ao primeiro e, em matilha, assim foram semeando a morte e a destruição ,primeiro naquela cidade, depois por todo o reino. Da sua coluna, já moribundo, o cavaleiro viu ainda, antes de exalar o último suspiro, a cidade carbonizada, uma vaca que corria em chamas, e o cadáver semi devorado de Simão de Sá, a caveira já privada do resplendor de santidade que a costumava aureolar(que os mais avisados atribuíam à abundante quantidade de azeite virgem com que fazia friccionar a calva, todas as manhãs) .
-todos de pé - ouviu-se uma voz
Vinham a entrar, de ascético barrete e envergando túnicas negras, o doutor em cânones Simão de Castro e o licenciado Gil Menezes. Seguia-os o secretário Jorge de Sá.
O presidente sentou-se à cabeceira da mesa, o outro inquisidor do lado direito e o secretário à esquerda.
-Sente-se o Réu - ordenou o presidente. - sabes ao que vens?
- Venho ante Vossas Mercês solicitar me digam minhas culpas por que fui preso...
- Como ousas?
- Sabendo minhas culpas, saberei se fui preso em causa ou sem ela.
- Neste Santo Ofício não se dizem culpas a nenhuma pessoa; primeiro que se prenda alguém, faz-se-lhe saber que as suas culpas foram bem examinadas. Assim se fez contigo - retorquiu Gil Menezes.
- Mas, se primeiro me prendestes e agora quereis examinar as minhas culpas...
- Os inquiridores contra a herética pravidade e heresia acharam-te culpas obrigatórias a prisão - interrompeu Gil Menezes
- Admoestamos-te que queiras encomendar-te ao Altíssimo e fazer discurso contigo e de tua vida e confessar tudo quanto sentires teres feito, dito e conversado contra a nossa Santa fé e juízo do mundo...
-Contra?!- exclamou o cavaleiro, indignado
- O réu não interrompe Sua Reverência - repreendeu o secretário
-...destarte, confessando a verdade de tudo com verdadeiro arrependimento, possas ser merecedor da misericórdia que neste Reino se usa com os confitentes e penitentes. E admoestamos - te que digas a verdade, tu que andaste por partidas estrangeiras onde te empeçonharam a alma com ideia malévola...
- empeçonharam?
- Lembre-se o réu que está a depor perante o tribunal da Santa Inquisição, ao qual se deve dirigir com humildade e respeito - cortou asperamente Gil Menezes
- Coloca a tua mão sobre os Santos Evangelhos e jura dizer toda a verdade. Tudo o que disseres ficará exarado em auto
O cavaleiro, contrafeito, lá estendeu a mão direita sobre o livro que lhe estendiam, e disse:
- Juro dizer toda a verdade - e concluiu, mal humorado - nem para outra coisa me quiseram cá.
Risos abafados nas bancadas do júri.
- Estamos à espera que fales - disse o presidente
O cavaleiro expôs então, demoradamente, o que havia feito na vida até então; descreveu com detalhe os seus estudos, e as suas viagens em busca de dragões; falou mesmo do elogio que lhe atribuíra o Rei Pantaleão, que está em glória, após ter lido uma das obras que publicara...
- Nas tuas obras atentaste amiúde contra o Santo entendimento do mundo e da vida, e descrevestes bestas hediondas contrárias aos costumes, assim é nosso parecer - rosnou Simão de Castro. - e também privaste com João Platereno, quando te encontravas em Pósnia, pregador da seita das Lucernas.
- Enquanto estava em Pósnia, agasalhando-me eu casa do burgomestre, foi-me perguntado se desejava ver o tal João Platereno que o convidaria a jantar. Folgaria de o ver, respondi-lhe. De feito veio aí o jantar. E jantámos todos a uma mesa onde vieram também jantar outras pessoas honradas da cidade. Entre práticas havidas, o meu anfitrião, que não me pareceu muito dado ao Santo e recto entendimento, disse-me que João Platereno tinha feito um livro, em língua latina, das coisas do mundo, assim das seculares como do mais, acerca da ordem das coisas e da existência das esferas e dos costumes e de como haviam de viver...
- Viste e leste esse livro?
- Nem vi nem li. Alevantámo-nos da mesa e eu não sou lembrado de termos praticado nenhuma cousa, então nem depois, que fosse contra o Santo juízo e entendimento.
-Depois foste-te a Friburgo da Brisgóvia, onde privaste com Sebastião Frólis e com Onofre da Salisbúria e com outros seguidores da seita das Lucernas.
- Vieram a jantar comigo, por insistência do estalajadeiro, e vieram também aí a jantar um capitão de alabardeiros e um físico. Se eram sequazes das Lucernas, não sou bem lembrado.
- E que dizia Sebastião?
- Na prática que tivemos à mesa veio a dizer que tudo o que fazia era a bom fim, trazer aquele povo à verdade e salvarem-se as almas que eram perdidas.
- Que lhe respondestes?
- Não sou bem lembrado, mas parecia-me mal o que dizia
- E que dizia Onofre da Salisbúria?
- Que seguia a doutrina de Sebastião por lhe parecer a autêntica. Não lhe respondi senão que lhe dei a entender não me comprazer de o ouvir.
- Também tens vindo a dizer e escrever coisas contra o recto entendimento, sobre bestas que não existem e assim sustentas que, não cumprido o que dizes, elas virão a estas partes e tudo destruirão.
- Do que tenho feito e dito já vos fui dando parte. Firmo-me na ciência dos antigos e dos novos, nos livros que fazem bem a meu ofício e na experiência. Em nada me apartei da Santa prática e do recto entendimento
- Ousas então dizer que viste dragões no mundo superior?
- Em verdade vos digo que os vi; e também vi o que faziam, por onde passavam. E indaguei e li e sei da forma de os enfrentar.
- Ousas então desafiar a nossa autoridade, a autoridade das Escrituras e do Santo Concílio, e o recto entendimento do povo aqui presente, que sabe que , por intervenção do Divino, foram os dragões encerrados no mundo inferior, desde tempos imemoriais?
- Das Escrituras, não consta tal notícia. Quanto ao mais, não sei o que vos diga, senão que os vi, porque de outra forma faltaria à verdade que não posso, por estar ajuramentado.
Grande clamor na sala; das bancadas do júri, levantavam - se vozes ameaçadoras, prontamente silenciados a varapau de marmeleiro pelos guardas presentes, a um sinal do secretário.
O martírio das perguntas continuou, durante várias semanas. Ao fim de cada dia, o cavaleiro era levado de novo ao calabouço, para, no dia seguinte, retornar pela escada em caracol à sala.
Um dia, os guardas vieram buscar o cavaleiro, como habitualmente. Escalados os degraus em espiral, transposto o corredor, aguardou o nosso herói junto ao escabelo, entregue aos moderados chisques dos jurados, enquanto os inquisidores entravam, cheios de caridade e unção divina. Sentados todos, disse Simão de Sá:
- Várias vezes vieste a esta casa e te admoestámos com benevolência confessasses tuas culpas e dissesses verdade delas. Com mau conselho não o quiseste fazer. Tornámos agora a admoestar-te que caias na verdade e de disponhas a confessar de tuas culpas e peças perdão delas. Senão vem o promotor fiscal com libelo criminal contra ti. Aproveitar-te-á muito mais confessar antes que depois.
- Saibam Vossas Mercês que já tenho confessado o que sinto em minha consciência. Não tenho mais nada a confessar. Sempre fui seguidor da boa prática e do bom juízo. Se acaso alguma vez errei, disso peço perdão e misericórdia.
A um sinal de Simão de Sá, o secretário fez tinir a campainha. Logo se abriram as portas , e passos abafados resvalaram por sobre o granito; apareceu o promotor fiscal com um rolo de papel na mão. A um sinal do presidente, desenrolou-o e leu o seu teor, de que se dá breve notícia:
"... criado na verdadeira fé e por tal havido e conhecido e obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina O Altíssimo e seus representantes na terra, fê-lo muito pelo contrário, a firmando proposições heréticas e contrárias ao recto entendimento...em certas vezes, praticou com certa companhia nos erros de João de Platireno, torcendo para isso algumas autoridades...muita amizade com grandes hereges e cabeças deles e heresiarcas, com eles comunicava, comia e bebia...viajava muitas léguas para ir ter com eles, recebia deles cartas e livros e ensinamentos e lhes respondia, era entre eles muito conhecido e convidado e tinha com eles muita conversação...inclinado à maldita seita e pouca afeição à Verdadeira prática e suas constituições e ensinamentos, desfazendo nelas por autoridades que para isso alegava...comia da carne, indiferenter, sem licença nem necessidade urgente...afeiçoado aos erros da seita maldita e aos seus sequazes, já que em pessoa os não podia conversar e comunicar, por estarem distantes ou ser já havido o seu passamento, os conversava por vil lição dos seus livros que possuía, proibidos pelo catálogo do Sagrado Concílio... confessou ter feito pacto com o Demo em partidas distantes, para assim descer ao mundo inferior e ver as criaturas imundas e se entregar aos prazeres interditos e demoníacos...e essa lição e essa prática argúi o réu de suspeito no crime de heresia por que é acusado, acrescenta e ajuda a prova que contra ele há desse crime, mormente sendo-lhe achados escritos e desenhos das ditas bestas...muitas vezes admoestado confessasse suas culpas e pedisse delas perdão, usando mau conselho o não quis fazer, antes, acinte e maliciosamente, oculta os erros e aleivosia contra o Sagrado Concílio e por tal deve ser declarado herege contumaz e negativo e condenado nas penas de direito...que seja condenado a ordálio como a seguir se dá notícia: que seja alçada coluna de pedra com dez jardas de altura na saída da cidade; que no alto da dita seja posto estrado de pequenez bastante para que o herege, podendo sentar-se, não possa entregar-se ao sono; que ao dito estrado seja alevantado o herege, sem viandas ou águas ou cousas de qualquer sorte, e lhe seja defeso daí descer e que para isso lhe ponham correntes; que o herege aí aguarde pela chegada do Juízo Final ou, e disso nos livre a Divina Providência, que aí o venha buscar o Demo com quem o dito fez pacto ou mostre dragão que o faça descer."
Na manhã seguinte, o nosso Amadis transmutou-se em estilista. Empoleirado sobre as estreitas tábuas, no alto da sua coluna, privado de água e de comida, definhou lentamente, crestado pelo sol e açoitado pelos ventos. Ao décimo terceiro dia de suplício, numa madrugada nevoenta, um urro hediondo, agourento , cortou os ares. Às primeiras horas da manhã, um bicho alado, esverdeado e grande como uma carraca apareceu sobre a cidade, cuspindo fogo . De nada valeram as descargas dos arcabuzes, dos falconetes e das colubrinas. Bem couraçada, a alimária sobrevoava as muralhas e, com gestos certeiros, flamejava soldados e armas, esmagava construções e devorava os homens. Dois outros dragões vieram juntar-se ao primeiro e, em matilha, assim foram semeando a morte e a destruição ,primeiro naquela cidade, depois por todo o reino. Da sua coluna, já moribundo, o cavaleiro viu ainda, antes de exalar o último suspiro, a cidade carbonizada, uma vaca que corria em chamas, e o cadáver semi devorado de Simão de Sá, a caveira já privada do resplendor de santidade que a costumava aureolar(que os mais avisados atribuíam à abundante quantidade de azeite virgem com que fazia friccionar a calva, todas as manhãs) .
Séculos mais tarde, uma expedição arqueológica encontrou, intacta, a bizarra coluna no meio de um deserto e, a seus pés, os escombros de uma cidade. No topo da coluna aguardava-os, aninhado, o corpo sem vida do cavaleiro, as feições dessecadas pelo ar quente do deserto, um indesmentível sorriso a cortar-lhe o rosto. Os arqueólogos não conseguiram divisar outra explicação para o semblante sorridente em quem tinha sido condenado a tão atroz suplício, senão o estado de loucura em que supostamente caíra, pouco antes do seu passamento . E no entanto...
Fábula - parte I
Era uma vez um cavaleiro andante, que decidiu partir em busca de dragões. Antes de embarcar em tão esforçada gesta, seguiu parecer avisado de consagrar ao conhecimento de tais quimeras um alongado lustre de estudos. Indagou junto de sábios e de homens santos, revolveu igrejos manuscritos e o ancestral pó das bibliotecas, seguiu cursos nas universidades de terras distantes, em tais paragens viu o horror e a destruição causada por tais criaturas, meditou em noites de angustiada insónia, e envolveu-se em inumeráveis querelas.
Certo dia, julgando-o dotado de fortaleza de corpo e de espírito, todos passaram a encará-lo como especialista em dragões - e, no seu magno mister, conhecia-lhes o viver e os costumes, pressentia-lhes as manhas, era versado em mil artes sobre como emboscar e combater tais criaturas.
Asinha soou a sua hora. Então, da panóplia retirou o estoque, o escudo, a durindana e a lança e, acalentado pela luz ígnea de um longínquo Levante, numa madrugada lá partiu, a galope do seu sonho.
Os meses passaram. A todos quantos encontrava , o nosso herói perguntava por donzelas raptadas, por cavernas sinistras fedendo a enxofre, por campos queimados, por castelos em escombros, por todos os indícios, enfim , que o guiassem de encontro à besta imunda. Debalde o fazia: dos inquiridos, uns abanavam a cabeça, incrédulos; outros, mais afoitos ou prevenidos, diziam-lhe à puridade não existirem tais coisas na ordem criada e querida pelo Verbo e, do alto da sua mundana ciência, juravam sobre a Santa Lei que " todalas essas cousas eram estórias d'imaginaçom e de pouco razoar".
Suspeitoso ante tamanho apartamento de escritura e prática, o nosso herói insistia em sua demanda; e muito embora sempre lhe dissessem que é a maioria quem tem a razão, ele insistia em considerar que , na ordem natural das coisas, mandava a razão divina, em todos os seus mistérios, e não as vozes dos homens.
Na espuma dos dias, o nosso herói viu-se subitamente impedido de levar a bom termo o seu propósito. Foi assim: a noite caíra . Encontrava-se o cavaleiro andante já recolhido ao agasalho do seu catre, quando um estrepitoso bater à porta da rua o veio desassossegar.
- Mas que vem a ser isto ? - indagou ele, através da porta entreaberta.
- Abram, em nome de El-rei e da Santa Inquisição.
Com matraqueada dureza de bater no passadiço, sete pares de botas precipitaram-se porta adentro: era o corregedor do crime que chegava, acompanhado por seis guardas.
- Terá de acompanhar-me - disse o corregedor ao nosso herói, sem sequer se dignar saudá-lo.
- Acompanhar? Por mercê de quem? Bem vos conheço: sois o doutor Sancho de Brites, da casa de El-rei e do seu desembargo.
- Senhor, eu aqui e agora não tenho cara, apenas cumpro ordens - cortou, seco, o corregedor.
- Que ordens?
Sem pestanejar, o corregedor desenrolou um papel, e leu-o:
"Nós, os inquisidores do Reino contra a herética pravidade e apostasia..."
O rosto do nosso herói empalideceu
"Fazemos saber ao mui magnífico doutor Sancho de Brites, corregedor do crime nesta cidade e comarca que, por neste Santo Ofício haver culpas obrigatórias a prisão contra..."
Em vão esquadrinhava o cavaleiro os meandros da sua memória em busca de cometimento que motivasse tão sinistro auto - mas, para além de ter aqui e acolá comido da carne em dia em que tal lhe era defeso, não se lembrava em que mais pudesse ter infringido os ditames da santa prática.
"...e com todo o resguardo e quietação se prenda o dito....e se entregue ao Alcaide do cárcere."
Sem tempo sequer para dispor algumas coisas do seu governo e de sua casa, o nosso herói foi levado, pelas alfurjas escuras da cidade, até ao cárcere. Aí chegado, tornaram-no, sem mais explicações, a um calabouço rochoso e húmido, onde o aguardava uma tábua à guisa de catre e a companhia dos ratos acidentais. Longos dias passou o nosso herói encerrado no seu calabouço, quebrada a monotonia apenas pela fugaz arribada diária de um balde de água salobra e de uma malga plena de uma potagem fétida. Uma manhã, quando a primeira claridade se fendia pela fresta gradeada, o cavaleiro ouviu o tinir das chaves e o levantar da tranqueta. Entraram então dois guardas, que apenas lhe disseram "segue-nos" .
Certo dia, julgando-o dotado de fortaleza de corpo e de espírito, todos passaram a encará-lo como especialista em dragões - e, no seu magno mister, conhecia-lhes o viver e os costumes, pressentia-lhes as manhas, era versado em mil artes sobre como emboscar e combater tais criaturas.
Asinha soou a sua hora. Então, da panóplia retirou o estoque, o escudo, a durindana e a lança e, acalentado pela luz ígnea de um longínquo Levante, numa madrugada lá partiu, a galope do seu sonho.
Os meses passaram. A todos quantos encontrava , o nosso herói perguntava por donzelas raptadas, por cavernas sinistras fedendo a enxofre, por campos queimados, por castelos em escombros, por todos os indícios, enfim , que o guiassem de encontro à besta imunda. Debalde o fazia: dos inquiridos, uns abanavam a cabeça, incrédulos; outros, mais afoitos ou prevenidos, diziam-lhe à puridade não existirem tais coisas na ordem criada e querida pelo Verbo e, do alto da sua mundana ciência, juravam sobre a Santa Lei que " todalas essas cousas eram estórias d'imaginaçom e de pouco razoar".
Suspeitoso ante tamanho apartamento de escritura e prática, o nosso herói insistia em sua demanda; e muito embora sempre lhe dissessem que é a maioria quem tem a razão, ele insistia em considerar que , na ordem natural das coisas, mandava a razão divina, em todos os seus mistérios, e não as vozes dos homens.
Na espuma dos dias, o nosso herói viu-se subitamente impedido de levar a bom termo o seu propósito. Foi assim: a noite caíra . Encontrava-se o cavaleiro andante já recolhido ao agasalho do seu catre, quando um estrepitoso bater à porta da rua o veio desassossegar.
- Mas que vem a ser isto ? - indagou ele, através da porta entreaberta.
- Abram, em nome de El-rei e da Santa Inquisição.
Com matraqueada dureza de bater no passadiço, sete pares de botas precipitaram-se porta adentro: era o corregedor do crime que chegava, acompanhado por seis guardas.
- Terá de acompanhar-me - disse o corregedor ao nosso herói, sem sequer se dignar saudá-lo.
- Acompanhar? Por mercê de quem? Bem vos conheço: sois o doutor Sancho de Brites, da casa de El-rei e do seu desembargo.
- Senhor, eu aqui e agora não tenho cara, apenas cumpro ordens - cortou, seco, o corregedor.
- Que ordens?
Sem pestanejar, o corregedor desenrolou um papel, e leu-o:
"Nós, os inquisidores do Reino contra a herética pravidade e apostasia..."
O rosto do nosso herói empalideceu
"Fazemos saber ao mui magnífico doutor Sancho de Brites, corregedor do crime nesta cidade e comarca que, por neste Santo Ofício haver culpas obrigatórias a prisão contra..."
Em vão esquadrinhava o cavaleiro os meandros da sua memória em busca de cometimento que motivasse tão sinistro auto - mas, para além de ter aqui e acolá comido da carne em dia em que tal lhe era defeso, não se lembrava em que mais pudesse ter infringido os ditames da santa prática.
"...e com todo o resguardo e quietação se prenda o dito....e se entregue ao Alcaide do cárcere."
Sem tempo sequer para dispor algumas coisas do seu governo e de sua casa, o nosso herói foi levado, pelas alfurjas escuras da cidade, até ao cárcere. Aí chegado, tornaram-no, sem mais explicações, a um calabouço rochoso e húmido, onde o aguardava uma tábua à guisa de catre e a companhia dos ratos acidentais. Longos dias passou o nosso herói encerrado no seu calabouço, quebrada a monotonia apenas pela fugaz arribada diária de um balde de água salobra e de uma malga plena de uma potagem fétida. Uma manhã, quando a primeira claridade se fendia pela fresta gradeada, o cavaleiro ouviu o tinir das chaves e o levantar da tranqueta. Entraram então dois guardas, que apenas lhe disseram "segue-nos" .
terça-feira, março 08, 2005
Leituras
" ... Contou que numa pequena ilha do Pacífico, onde vivera alguns meses, a mentira era considerada o mais sólido pilar da sociedade.O Ministério da Informação, instituição venerada, quase sagrada, estava encarregue de criar e propagar notícias falsas. Uma vez à solta entre as multidões, essas notícias cresciam, adquiriam frmas novas, eventualmente contraditórias, gerando amplos movimentos populares e dinamizando a sociedade. Imaginemos que o desemprego atingia níveis considerados perigosos. O Ministério da Informação,ou, simplesmente, o Ministério,punha a circular notícias segundo as quais fora encontrado petróleo em águas profundas, porém ainda dentro da zona marítima exclusiva do país. A possibilidade de uma eminente explosão económica revitalizava o comércio, os técnicos expatriados regressavam a casa, desejosos de colaborar na reconstrução, e em poucos meses nasciam novas empresas e novos empregos. Nem sempre, é claro, as coisas corriam da maneira prevista pelos técnicos. Certa ocasião, por exemplo, o Ministério, que a despeito do nome, foi sempre uma estrutura independente do poder político, lançou sobre um opositor, na intenção de lhe destruir a carreira, a suspeita de que este mantinha um caso extraconjugal com uma famosa cantora inglesa. O boato cresceu e ganhou força, de tal forma que o opositor se divorciou da esposa, casou com a cantora (que antes nem sequer conhecia), e com isso alcançou enorme popularidade, vindo a ser eleito, anos depois, presidente do país.
'' A impossibilidade de controlar os rumores'', concluiu, ''é a principal virtude daquele sistema. É isso que confere ao Ministério uma natureza quase divina - xeque ao rei" "
José Eduardo Agualusa, " O vendedor de passados"
O problema pictórico
Dorian Gray cedeu a alma para satisfação de caprichos da vaidade, transferindo para a tela o envelhecimento que o comum dos mortais sofre na pele. A alma, essa, classicamente ficou entregue às forças do oculto - o funesto desfecho é por demais conhecido, para quem leu as páginas escritas por Oscar Wilde, há mais de um século ( quem ainda as não leu, está sempre a tempo, e olhem que vale a pena...). Vem isto a propósito do inusitado tráfego postal do retrato do Professor Freitas do Amaral, remetido pelo CDS/PP -em aprumado embrulho, espera-se - ao PS. Não sei se os remetentes acreditam no seu íntimo que algo de semelhante, ressalvadas as devidas diferenças, sucedeu, e desejem longe de si as influências malévolas de semelhante objecto, eventualmente objecto de tão mefistofélica transacção.
Confesso que não tenho grande afinidade com o CDS/PP - há certos "tiques" ideológicos em relação aos quais me acho mesmo em rota de colisão. Compreendo que militantes e simpatizantes possam entender o ingresso do fundador e originário líder do partido no executivo de Sócrates como uma afronta, ou mesmo como uma "traição". Até poderia achar como previsível ( e, por certo, condenável) que certos militantes chegassem ao ponto de enviar mensagens inflamadas de reprovação ao antigo líder ou que, à palestiniana, procedessem à imolação pelo fogo de efígies do nóvel ministro. Aos dirigentes, contudo, exige-se-lhes outra seneridade. E outras atitudes.Afirmar, à laia de justificação, que a retirada do retrato teria de ser feita porque "a juventude do partido" não ia compreender que um ministro socialista estivesse, garboso e sorridente, na parede da sede do partido, é considerar a "juventude" inapelavelmente ignorante. Enviar retratos por via postal cheira a Carnaval fora de época. A última campanha eleitoral deu já exemplos suficientes de como não deve ser a actuação dos partidos políticos. Aconselham-se, se se acha que os mesmos devem merecer alguma consideração do "povo anónimo", novas formas de actuação, que não façam lembrar os "colos" e outros dislates semelhantes...
sexta-feira, março 04, 2005
Dos bodes e outras criaturas destinadas à expiação de pecados alheios
"...Nos enim cum tandem ad Barbarorum sylvas, saltusque pervadimus, muti et surdi penitus invenimur; muti, quia loquendo non intelligimur; surdi, quia audiendo nonintelligimus..."
Padre António Vieira
[...quando finalmente atravessamos florestas e selvas em direcção à barbárie, estamos plenamente mudos e surdos; mudos, porque falando não somos entendidos; surdos, porque ouvindo não entendemos...]
O Juíz Conselheiro Nunes da Cruz, em plena corrida eleitoral para a presidência do STJ, veio acusar os Advogados de serem os responsáveis pelo atraso da justiça. A acusação não é nova e, como em outras ocasiões, foi feita no mesmo tom ligeiro, generalista e primário. Os antigos hebreus ofereciam em holocausto um bode para quem transferiam os seus pecados. Era desculpável e intelectualmente mais honesto - porque a humanidade ainda estava na infância do pensamento lógico; porque, pelo menos, se assumia que os pecados não eram do bode, mas da comunidade.
Em fases posteriores da história, o bode foi sendo substituído por homens - foram os cristãos no império romano, os judeus na Idade Média e no III Reich. Tratou-se, evidentemente, de uma regressão de que ninguém se poderá orgulhar,e que ainda vai episodicamente ressurgindo, ligado a extremismos, integrismos e outros "ismos " de semântica pouco abonatória. Resultam, ordinariamente, de concepções da ordem social onde a igualdade é só para alguns, e pressagiam a integração do comum mortal numa versão actual, ao vivo e a cores, da "Animal Farm". Não chegam a tomar a nuvem por Juno, tão grande é a cegueira de quem assim arenga, que não se descobre nu no palanque...
Padre António Vieira
[...quando finalmente atravessamos florestas e selvas em direcção à barbárie, estamos plenamente mudos e surdos; mudos, porque falando não somos entendidos; surdos, porque ouvindo não entendemos...]
O Juíz Conselheiro Nunes da Cruz, em plena corrida eleitoral para a presidência do STJ, veio acusar os Advogados de serem os responsáveis pelo atraso da justiça. A acusação não é nova e, como em outras ocasiões, foi feita no mesmo tom ligeiro, generalista e primário. Os antigos hebreus ofereciam em holocausto um bode para quem transferiam os seus pecados. Era desculpável e intelectualmente mais honesto - porque a humanidade ainda estava na infância do pensamento lógico; porque, pelo menos, se assumia que os pecados não eram do bode, mas da comunidade.
Em fases posteriores da história, o bode foi sendo substituído por homens - foram os cristãos no império romano, os judeus na Idade Média e no III Reich. Tratou-se, evidentemente, de uma regressão de que ninguém se poderá orgulhar,e que ainda vai episodicamente ressurgindo, ligado a extremismos, integrismos e outros "ismos " de semântica pouco abonatória. Resultam, ordinariamente, de concepções da ordem social onde a igualdade é só para alguns, e pressagiam a integração do comum mortal numa versão actual, ao vivo e a cores, da "Animal Farm". Não chegam a tomar a nuvem por Juno, tão grande é a cegueira de quem assim arenga, que não se descobre nu no palanque...
Cuido que o Dr. Nunes da Cruz, para além de jurista de inegáveis méritos, é homem assisado e com sentido de responsabilidade. Não sei a que atribuir as declarações. Talvez esteja cansado . Também eu estou farto das esperas de dois anos para se saber se, afinal, se realiza ou não uma peritagem; de mais uma ano para, afinal, saber quem a vai fazer; das kafkianas trocas de correspondência quando é necessário citar alguém no estrangeiro; da devolução ao meu escritório de autos de declarações em idiomas exóticos, sem a competente tradução; dos indeferimentos de alterações das datas das diligências para cuja marcação ninguém se dignou consultar-me, por uma despótica e não legislada "indisponibilidade de agenda do tribunal". Das execuções propostas para a quais, dois anos volvidos, não há data designada para penhora. Posso sempre aguentar. Posso optar por me dedicar à cultura hidropónica ou ao origami. Posso protestar. O que não posso é vir para a praça pública afirmar que os juízes e os funcionários judiciais são todos calões ou incompentes. Isso não o posso fazer. Até porque não é verdade, como geralmente não o são as generalizações.